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Leia a apresentação do livro, escrita por André Rufino do Vale



As democracias liberais contemporâneas foram construídas baseadas na ideia da neutralidade política das Forças Armadas. Isso ocorreu, sobretudo, nas novas democracias da América Latina e do Sul da Europa, cujos processos de transição de regime, no último quarto do século XX, pautaram-se em complexas negociações de anistia política sobre a atuação de oficiais nos períodos de ditadura militar. Na Espanha, em Portugal, na Argentina, no Chile e também no Brasil, a ruptura político-constitucional com o autoritarismo anteriormente protagonizado pelas Forças Armadas caracterizou as transições democráticas e norteou o caminho da institucionalização e da consolidação das novas democracias com o desejado distanciamento dos militares da atividade política.


No Brasil, o novo regime democrático instaurado em 1985-88 inegavelmente foi exitoso na construção das relações de neutralidade entre forças armadas e a política. A Constituição submeteu as Forças Armadas aos poderes constitucionais e permitiu o afastamento paulatino de seus membros do exercício da política. Sob a nova ordem constitucional, os três comandos das Forças (Exército, Marinha e Aeronáutica) foram incorporados à estrutura do Ministério da Defesa, sob a direção de um Ministro civil, e passaram a atuar exclusivamente no âmbito de suas funções constitucionais, definidas no art. 142 da Constituição. Assim, desde a redemocratização, as relações civis-militares foram continuamente aperfeiçoadas, criando as condições institucionais, próprias de democracias liberais, para o surgimento de uma nova geração de oficiais dedicados às tarefas profissionais e comprometidos com o regime democrático.


O processo de consolidação democrática e de contínua profissionalização das Forças Armadas começou a dar sinais de retrocesso no final da década de 2010. O Presidente Jair Bolsonaro, eleito no final do ano de 2018 e declaradamente um admirador das Forças Armadas brasileiras, inclusive da sua atuação nos períodos ditatoriais, fez a opção política pela formação de um governo com a onipresença de militares nos diversos órgãos ministeriais. O Ministério da Defesa, até então dirigido por personalidades civis, voltou ao comando dos generais e assim passou a ter influência decisiva nos rumos governamentais, não apenas das suas políticas públicas, mas igualmente na condução das difíceis e tensas relações institucionais que desde então passaram a marcar a dinâmica entre os Poderes Executivo, Legislativo e Judiciário no Brasil.


O ano de 2020 iniciou com o profundo impacto social da pandemia do coronavirus (COVID-19), cuja consequência política mais evidente no Brasil foi o aprofundamento da crise institucional entre os Poderes da República. Com visões antípodas sobre a repartição das competências constitucionais entre os entes federativos para o combate à pandemia, a Presidência da República (apoiada pelo Ministério da Defesa) e o Supremo Tribunal Federal passaram a protagonizar conflitos de elevada tensão política, gerando temores a respeito de sua capacidade institucional para o diálogo e a moderação, mecanismos típicos das democracias constitucionais para a solução de impasses políticos entre os poderes.


A crise se agravou quando o Presidente da República e seus apoiadores políticos (incluindo alguns militares) passaram a publicamente defender que as Forças Armadas poderiam exercer uma espécie de "poder moderador" para arbitrar e assim solucionar o conflito entre os poderes. O governo se baseou na tese levantada pelo conhecido jurista Ives Gandra Martins, segundo a qual o art. 142 da Constituição autorizaria a qualquer dos poderes, ao se sentir violado por ato de outro poder, a reivindicar a "garantia da lei e da ordem" pelas Forças Armadas[1]. A ideia seria a de uma "intervenção moderadora pontual", para a "interpretação correta da lei aplicada no conflito entre Poderes". Uma intervenção militar "pontual, jamais para romper, mas para repor a lei e a ordem", segundo Ives Gandra.


A tese de Ives Gandra - como ele próprio declara - sempre foi assim defendida, desde a promulgação da Constituição de 1988, ainda que de forma isolada. Não obstante, sua reaparição no calor de umas das crises políticas mais graves desde a redemocratização causou o espanto geral e a imediata reação da comunidade jurídica.


Os juristas que compõem esta obra resolveram dar a sua contribuição para a reafirmação e a defesa da interpretação correta do art. 142 da Constituição. Como se verá ao longo da obra, essa interpretação somente pode ser a de que as Forças Armadas, como instituições permanentes e essenciais ao Estado Democrático de Direito, devem exercer as suas funções constitucionais com a neutralidade política exigida pelo regime democrático, a elas não cabendo, porque não autorizado pela ordem constitucional vigente, o exercício de qualquer “poder moderador” dos conflitos entre os Poderes Executivo, Legislativo e Judiciário.


No decorrer da elaboração dos estudos que integram esta obra, diversas instituições manifestaram-se formalmente e defenderam a interpretação correta do art. 142 da Constituição. O Senado Federal[2], a Câmara dos Deputados[3] e a Ordem dos Advogados do Brasil[4] emitiram pareceres jurídicos contundentes sobre o assunto. Entre os posicionamentos mais impactantes, deve-se mencionar a decisão do Ministro Luís Roberto Barroso, do Supremo Tribunal Federal, de 10 de junho de 2020, na qual ele afirma que “nenhum elemento de interpretação – literal, histórico, sistemático ou teleológico – autoriza dar ao art. 142 da Constituição o sentido de que as Forças Armadas teriam uma posição moderadora hegemônica”[5].  Dois dias depois, seguindo a mesma linha de raciocínio, o Ministro Luiz Fux, Vice-Presidente do STF, defendeu em decisão que “a missão institucional das Forças Armadas na defesa da Pátria, na garantia dos poderes constitucionais e na garantia da lei e da ordem não acomoda o exercício de poder moderador entre os poderes Executivo, Legislativo e Judiciário”[6].


A reação imediata das instituições demonstra que a interpretação correta do art. 142 da Constituição tornou-se crucial para a continuidade do processo de desenvolvimento e consolidação da democracia brasileira. Os autores que integram esta obra, conhecidos professores de direito constitucional em diversas instituições de ensino superior, de diferentes regiões do país, defendem a importância fundamental da definição e proteção dos contornos institucionais das Forças Armadas estabelecidos na Constituição de 1988, como garantias institucionais da própria democracia.


Esperamos que os artigos aqui reunidos possam de alguma forma contribuir para o esclarecimento e a reafirmação das características institucionais e das funções constitucionais das Forças Armadas na democracia fundada sob a Constituição de 1988.

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